Apesar do assunto da humanização estar em alta, ainda falta muito para que o deficiente receba um atendimento digno nas unidades básicas
Levar a filha ao médico é uma tarefa difícil e estressante para Flávia Ferreira. Isso porque Maria Lívia, de 27 anos, com paralisia cerebral, que vive com deficiência física, e precisa de atendimento especializado em diferentes áreas. “Falta estrutura para nos atender. Alguns lugares não tem acessibilidade para cadeira de rodas, falta conhecimento dos funcionários em relação à prioridade do atendimento ao deficiente. Já ficamos aguardando horas para sermos atendidas e ainda assim, minha filha não teve a atenção necessária”, conta Flávia.
Até o ano de 2019, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) registrou 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência no Brasil, o que corresponde a quase 25% da população. Esse número demonstra que há uma população muito grande de pessoas que precisam de atenção especial e, na maioria das vezes, são colocadas de lado quando mais precisam de destaque: na busca ao atendimento da atenção básica de saúde.
Para Maria Inês Salati, chefe de enfermagem e farmacêutica, ainda falta muito para que os profissionais que atuam na linha de frente da atenção básica consigam atender às necessidades dessas pessoas. “Falta preparo teórico e prático para lidar com determinadas deficiências, principalmente, as cognitivas. Como a enfermagem é uma profissão que exige muito dos cinco sentidos, às vezes, falta sensibilidade para entender o outro com deficiência, como a auditiva e visual”.
Apesar do conceito de humanização no tratamento estar cada vez mais presente, Maria Inês afirma que a realidade ainda é diferente do estudo teórico. “Temos avançado bastante neste quesito, porém as exigências do cotidiano e a prática profissional apertada com acúmulo de tarefas e excesso de ações burocráticas desvirtualiza esse conceito de humanização. Na prática, ela fica bem distante do ideal”.
Flávia, que vive essa rotina cansativa de ir a médicos, lida com a falta de preparo de enfermeiros e médicos e sente essa realidade, afirma que falta empatia, amor ao próximo e treinamento especializado. “Os cuidados que minha filha precisa são muito específicos. Ela precisa de fisioterapia, terapia ocupacional, fonoaudiologia, hidroterapia, dentista especializado. Para conseguir esses especialistas, preciso entrar com ações junto ao ministério público, que são desgastantes, nos colocam à margem, e a briga em busca de um médico dura até anos. É cansativo e tenho várias pessoas ao meu redor que vivem as mesmas situações”.
Por outro lado, hospitais e clínicas não fornecem as condições necessárias para que os profissionais atuem e recebam essas pessoas. Edson Luis Soares Dias, mestre em bioética e professor de cursos de especialização para enfermeiros, levanta essa questão. “Muitos locais de atuação não tem protocolos determinados e isso atrapalha muito na atuação. A diretoria e os responsáveis pelos hospitais precisam levantar os pontos de desenvolvimento e fazer ajustes até atingir um consenso produtivo e funcional, induzindo o profissional a ficar atento às alterações e novas propostas no atendimento”, diz.
A falta de visibilidade e políticas públicas representativas é motivação para pessoas como Flávia iniciarem projetos que possam, de alguma forma, dar suporte a quem passa por situações de vulnerabilidade. As experiências de Flávia com sua filha, Maria Lívia, fizeram com que ela iniciasse o projeto Anjos Sobre Rodas, em que arrecada cestas básicas e equipamentos como cadeiras de rodas para famílias com deficientes. “Essa é uma maneira de oferecer um amparo a famílias que, assim como a minha, vivem na invisibilidade e sofrem para conseguir coisas básicas, como um atendimento digno em uma UBS [Unidade Básica de Saúde]”, conta.
Para Edson, não há fórmula mágica para resolver essa questão, o que há é compromisso. “A enfermagem é perfeitamente capaz de realizar esse trabalho, pois mantém contato permanente com esses indivíduos. Uma medida inicial é um treinamento com a equipe, que precisa ser sensibilizada para estar presente no passo a passo do atendimento, sabendo agir, cuidar, oferecendo segurança e confiança aos pacientes”.
Além disso, a menor sobrecarga de trabalho com mais tempo para estudar e lidar com o diferente, é fundamental para o desenvolvimento de protocolos adequados, segundo Maria Inês. “Gasta-se mais tempo com os indivíduos com deficiência, então, as instituições também devem participar ativamente com gestão facilitadora para tal, reciclagens de estudos, atualizações, incentivos, rodas de conversas multiprofissionais, treinamentos, espaço para os profissionais exporem as dificuldades encontradas diariamente e acharem conjuntamente as soluções”, diz.